quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Cartunista - Pilot episode


Capítulo 4: Mattew e Renata (parte 1)
"O retrato da mediocredade"
Essa manhã foi meio nostálgica, mas também interessante, pelo menos no meu ponto de vista. Foi engraçado imaginar se rolassem mesmo alguns barracos no velório do ancião solitário. Saindo do cemitério avistei novamente a garota que parecia estar me seguindo. Cabisbaixa em frente ao túmulo do velho, isso explica uma pequena sensação que tive ao velar o corpo dele, algo me parecia estranho como se houvesse alguém observando, talvez tenha sido isso mesmo; a menina com medo ou vergonha ao ver um estranho, esperou que eu me retirasse para poder visitar seu ente falecido. Mistério resolvido...

Foram rápidas as horas que me levaram até minha antiga moradia para apanhar meus pertences depois ir à casa de Renata para ver se podia me ajudar a ajeitar minhas coisas no novo lar, dei a desculpa de que seria mais legal ter um toque de organização feminina para as coisas não ficarem de ponta cabeça. Em um breve instante antes de chegarmos, fico pensando na garota no cemitério, mas minha mente muito lógica me pede para ignorar novamente. Eu obedeço.
Percebo que Renata está ansiosa para ver a casa, por isso está respeitando o meu silêncio.

- Chegamos! - Disse eu quebrando o silêncio.

- Nossa Mattew! Então é essa a casa que você comprou? - Posso ver a sombra da decepção estampada sobre seus olhos, mas ignoro isso também.
O que sempre me chama a atenção é que ela nunca ousa chamar-me de Matt como os outros.

- Sim , na verdade eu praticamente a ganhei. O senhor Hitosh - Em fim lembrei-me do nome do velho - Já estava certo de seu falecimento, sem parentes nem amigos próximos nada teria a fazer com muito dinheiro.

- Cara que tenso! Tu não tem medo de morar sozinho na casa de um homem morto?

- Por que eu deveria sentir medo?

- Sei lá! Quando eu era pequena eu costumava ver o espírito do meu avô que havia falecido não muito após o meu nascimento!

- O quê? Está sugerindo que o fantasma do velho "Shing- Ling" virá me assombrar para tomar de volta a sua casa? - Digo em tom debochado.

- Não zombe de mim Mr. McGregory!

- Desculpe, mas não pude resistir à piada! A verdade é que eu não consigo acreditar em coisas que não posso ver e, além disso, duvido que espíritos, ou sei lá o que sejam essas coisas depois que morrem, venham querer intrometer-se na vida das pessoas miseráveis deste mundo, não vejo lógica nisso e se eu morresse neste exato momento, estou certo de que não haveria nada nesse mundo que me faria permanecer entre os vivos. Este mundo após a morte nada tem a nos oferecer!

- Talvez você tenha razão

- Não! Não leve muito em consideração o que eu digo! Afinal eu não fico muito tempo pensando nessas coisas. - "Afinal eu não perco o meu tempo pensando em porra nenhuma". Foi o que eu quis dizer...

- Certo!

Ela afirma com a cabeça de modo a encerrarmos o assunto. Então seus olhos direcionam-se a uma das caixas que eu carregava, agora jogada ao chão como as demais coisas que trouxe comigo da casa da minha mãe.
- O que há naquelas caixas? Não vai dizer que tudo aquilo são suas roupas?

- Não! Nada disso! Minhas roupas estão todas nessa pequena maleta que seguro. - Percebo a grande estupefação em sua face mirando a minha mão esquerda que carrega uma pequena maletinha que não suportaria nem mesmo seis peças de roupa.

- Então o que você carrega nesses caixotes?

- São apenas alguns livros, papeis limpos e alguns desenhos!

- Estes livros, você já leu todos?

- É... Como posso dizer?... - Fico um tanto confuso com minhas próprias explicações. - Mais ou menos!

- Como assim?

- Bom! Pra ser sincero eu já li todos, porém nunca tive coragem de ler o último capítulo de nenhum deles!

- Quer dizer que você não terminou de ler?

- Não eu prefiro dizer que eu li o bastante de cada um! Veja por esse lado, cada um desses livros traz uma fabulosa estória, de romance, suspense, aventura, romance-policial, ou seja, são o tipo de leitura que desperta em você a vontade de participar da estória e criar situações mirabolantes para descobrir quem ou o que é o verdadeiro causador de caos dentro do contexto. Sendo assim você acaba criando a sua versão pessoal da estória. No entanto a maioria das pessoas que agem dessa maneira termina por terem suas expectativas frustradas num desenrolar tristemente patético da liturgia, ou em casos reservados a leitura acaba superando suas conclusões apresentando um desfecho mais complexo do que as simples e ingênuas teorias do leitor, o que também não agrada muito. Eu prefiro parar no ponto mais crítico da estória e elaborar o meu próprio desfecho, de forma a não haver um final muito feliz, nem dramático ao extremo, afinal na vida real, o único fim propriamente dito é a morte, mas seria muito estúpido se
todos os livros terminassem com seus personagens principais todos engomadinhos dentro de um caixão de mármore queimado, mas também seria estranho se houvesse um "feliz para sempre", no fim de cada livro.
- Nunca havia reparado nas coisas por esse ponto de vista! - Diz Renata ainda tentando processar a grande quantidade de asneiras que disse a ela.

- Bom! Existem prós e contra, sem contar nas milhares de baboseiras que se comete ao pensar dessa maneira. Mas eu não me importo talvez algum dia eu termine de ler, mas agora não tem tanta urgência.

- Como você é esquisito!

- Não! Não é isso, a verdade é que eu não me importo com essas coisas!

- Entendo! - Quando diz isso reparo que algo lhe escapou do semblante, talvez alguma coisa que eu disse tenha a desagradado. Às vezes eu sinto que ela se decepciona comigo, tipo quando ela me lança um olhar como se estivesse estampada na minha cara a palavra "estúpido", ou qualquer outra coisa que siga esse gênero.

Demora um pouco e ela caminha até o centro do que certamente seria a sala de estar do Hitoshi Sama, onde deixei outra caixa repleta de papeis. E surge a pergunta:

- E nessa caixa? O que trouxe? Mais livros?

- Não! Ai estão alguns desenhos e resto são rascunhos e papeis em branco!

- Posso ver? - Ela faz uma cara de pidona e começa a fuçar dentro da caixa como se fossem obras primas insubstituíveis, é por isso que eu gosto tanto dela, sempre faz as coisas parecerem fantásticas. - Nossa Mattew você é um artista, já pensou em investir nisso?

- Bem! Antes eu até me iludia com essa ideia, mas logo percebi que as pessoas daqui jamais dariam importância para um cara como eu.

- Mattew os valores das pessoas partem delas mesmas. Ou seja, se a mudança não partir de você, não importa para onde vá, as pessoas sempre verão você da mesma forma!

- Putz! Isso foi profundo, mas não muda meu jeito de pensar. Quanto aos meus desenhos, é apenas um hobbie! Se um dia vão me levar a algum lugar, prefiro deixar que a natureza dos fatos decidam por mim.

- Ora, ora! Mattew você é um cara muito confuso mesmo.
- E então! O que você achou do meu novo cafofo? - Cortando o assunto principal novamente, observo enquanto Renata contempla cada espaço vazio e empoeirado da casa e aguardo sua resposta: Ela me encara com seus olhos grandes, ergue as sobrancelhas repetindo o movimento com as mãos e diz:

- Bom! Que posso dizer?

- Diga o que quiser! - Como se qualquer coisa que ela dissesse não pudesse me agradar tão pouco me ofender. Acho melhor bancar o indiferente em situações semelhantes.

- É... A sua cara! Não te imaginaria vivendo em um lugar diferente!

- Muito obrigado! - Sem qualquer motivo mais interessante caímos na risada. Quanto ao comentário dela não sei se devo me ofender ou levar como elogio. Afinal se essa casa tem tanto a ver comigo como ela disse, certamente deve pensar que sou um perdedor. Não a culpo por pensar assim, pois ela é o tipo de pessoa a quem nunca faltou nada na vida. O pai dela morreu antes que ela pudesse guardar qualquer lembrança do cara, daí a mãe dela se casou com um boa pinta montado na grana e eles moram num bairro classe média-alta a duas quadras daqui, acho que é a primeira vez que ela coloca os pés no gueto. Eu nunca entrei na casa dela porque eu acho que o padrasto não curte muito que sua enteada leve marmanjos desocupados como eu pra ficar fuçando na tv de plasma 42 polegadas que logicamente eles devem ter pendurada na parede da sala (isso se não for coisa maior), ou mesmo assaltando a geladeira recheada de tudo que se possa imaginar. Eu chego a entender o ponto de vista do cara.

Continuando, eu nunca tive coragem de levá-la na minha outra casa, senti medo de que ela se assustasse e nunca mais olhasse na minha cara. Sabe como é né? Se eu fosse um cara que tivesse uma vida boa como a dela com certeza pensaria umas mil vezes antes de sequer olhar na cara de um pé-rapado como eu.

Mas eu até me alegro agora quando penso que mesmo ela tendo um leque imensurável de melhores opções, prefere a minha companhia.
Por isso quando comprei essa casa quis que ela fosse a primeira a ver meu primeiro ato de independência, minha casa própria, e por mais humilde que seja eu também jamais havia me imaginado em lugar diferente desse. Se quer saber esta casa é exatamente como eu imaginava que seria quando eu saísse da casa da mamãe.

Um bairro suburbano, mas tranquilo sem barracos nem tiroteios, acho que os caras daqui também não curtem muito perder tempo brigando, ou comendo a mulher uns dos outros, de certo que para evitar dor de cabeça, eu curto esse lance, se pudesse até criaria uma religião com esse propósito, o discurso poderia ser assim:

“Em prol de evitar a fadiga, qualquer tipo de preocupação e dores de cabeça, permaneçamos cada um de nós com nossos traseiros fedorentos grudados em suas respectivas poltronas..."

As vezes eu acho que é por esse tipo de pensamento que minha mãe se decepcionou tanto comigo a ponto de nem se importar se eu ia passar fome aqui ou não.
             Contudo foi esse o processo que me trouxe até aqui.

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